2010-01-25

Curto

"... de maneiras que, no vôo de regresso de Tânger, no domingo, dei de caras com o Sean Connery na fila para a casa de banho. Ainda tentei disfarçar, mas percebi que ele me tinha reconhecido e que me vinha falar. Felizmente o urso interrompeu-o, que eu não estava com paciência para falar com ele."

"O urso?"

"Sim, um urso polar que estava a ser transportado para o zoológico soltou-se, invadiu a cabine e começou a estraçalhar hospedeiras e passageiros. Era só sangue, sapatos e membros desfeitos a voar em todas as direcções. Como ninguém fazia nada que não fosse gritar e sangrar, cheguei-me eu à frente e mandei-lhe um sopapo no focinho. Ao princípio ficou atarantado mas depois começou a grunhir, por isso desatamos ao soco e à patada até que o apanhei numa chave de braço e o sufoquei até ele perder os sentidos. Nisto o terrorista levanta-se e grita qualquer coisa sobre a Torre Eiffel ou Napoleão ou lá o que era."

"Terrorista?..."

"Iá. Queria desviar o avião para Toulouse ou Toulon, não me lembro, porque a tia o tinha excluído das partilhas e dizia que a vinha era dele e não dos primos. Aproximei-me dele devagarinho e pedi-lhe que não se enervasse e que tinha um croissant no bolso e que lho dava se me deixasse ser amigo dele. Ele acreditou-se e assim que me aproximei o suficiente dei-lhe um rotativo na testa e as pessoas começaram todas a aplaudir e erguer-me em ombros e as mulheres todas a dizer que eu devia ser sexualmente muito competente e que era um orgasmo com pernas e que queriam ter os meus filhos e isso tudo. Palavras delas. Foi quando o avião começou a cair porque o piloto teve um ataque cardíaco."

"O pil... e o co-piloto?"

"Também. Tiverem os dois ataques cardíacos, mais um assistente de bordo e uma velha. Diz que é contagioso em ambientes muito apertados. Também não sabia, mas foi um médico meu amigo que me explicou. E quando perguntaram se alguém sabia pilotar um avião toda a gente olhou para mim. Até o Sarcozy me telefonou a pedir que o fizesse e a dizer que «ah, je te donne une voltinhe dans Carla Bruni aprés, et ça» e eu acedi apesar de estar um bocadinho cansado por ter passado a noite anterior a fazer amor com a equipa sueca de extreme bikini. Tinha fotografias para vos mostrar de umas posições novas que inventei e tudo, mas a máquina partiu-se. Acho que foi quando matei o urso."

"Então o urso não tinha ficado inconsciente?"

"Não... esse foi o urso polar, este era outro, quando ainda estava no aeroporto. Entrou lá de repente e como já tinha um bebé na boca tive que o matar com um golpe de karaté. Ao urso, porque o bebé fui eu que o ajudei a nascer enquanto fazia o check in, porque rebentaram as águas à senhora atrás de mim e como estavam todos a entrar em pânico fiz eu de parteiro apesar de ter sapatos de camurça. A senhora até disse que a partir de agora todos os bebés da família dela vão ter o meu nome, mesmo que sejam raparigas. Não vos tinha contado esta parte? Mas prontos, lá fui eu para os comandos do avião. Como tive o X-Wing para Spectrum e tenho uma coordenação motora de nível olímpico e nervos de aço, aquilo até foi fácil. Como o trem de aterragem não funcionava aterrei de barriga no jardim da Gulbenkian, liguei os quatro piscas e vim-me embora. As pessoas todas queriam que eu ficasse para me darem medalhas e lingotes de ouro e isso, mas eu queria ir para casa para ver o jogo do Benfica. E o vosso fim de semana como foi?"

Acho que os meus colegas começam a desconfiar que eu invento as histórias que conto sobre a forma como passo os meus fins de semana, mas narrativas sobre o tempo que passo deitado no sofá a recolher o cotão acumulado no umbigo não me parecem muito interessantes.

2010-01-21

Mateus

O Mateus era um tipo abrutalhado. Não era por mal, era a sua natureza. Certa vez, depois de ter faltado dois dias, a directora de turma perguntou-lhe a razão, ao que ele respondeu, candidamente e com um encolher de ombros, "tive caganeira". Ela tentou disfarçar o riso, nós não.

O Mateus travava uma luta diária com a literacia, e estava a ganhar. Num teste de Português copiou pelo Nuno, e quando o Mateus copiava, o Mateus copiava mesmo: palavra por palavra - o que, curiosamente, não passou despercebido à professora.

Gostávamos de jogar à sueca com o Mateus porque dizia "trrunfo" e porque fazia passagens para apanhar a manilha que corriam sempre mal. Não gostávamos de jogar às cartas com o Mateus porque demorava eternidades a jogar, mesmo que só tivesse uma carta na mão.

Uma vez gabou-se de ter beijado a Joana. Tinha bebido da mesma lata de Seven-Up e, explicou ele, pela regra da transferência isso era o mesmo que tê-la beijado. Não era, asssegurou-lhe o Paulo Jorge, que ia diariamente para trás do refeitório com a Ana Patrícia dar linguados e por isso era entendido no assunto.

Às vezes fazíamos concursos a ver quem conseguia fazer chegar um fio de cuspo mais perto do chão e voltar a sorvê-lo e ele ganhava sempre. Até conseguia puxar papéis do chão, se levasse gosma na ponta. Não folhas A4 ou cartolinas, mas os papéis das Gorila e isso.

Nas aulas de Educação Física o Mateus perguntava às raparigas se lhe queriam ver a pila. Elas diziam que não, mas ele mostrava na mesma. Mas quando jogávamos ao mata, todos queriam ficar na equipa dele, porque ele levava aquilo muito a sério e a probabilidade de alguém morrer era bastante real. O Rui que o diga, que levou uma bolada na nuca e ficou o resto da aula a babar-se no chão do ginásio.

O problema do Mateus era ser muito competitivo. Uma vez fizemos um concurso para ver quem conseguia suster a respiração por mais tempo. O Diogo aguentou quase dois minutos, até ficou azul e tudo, mas o Mateus ganhou. Morreu mas ganhou.

2010-01-20

Uma Aventura No Governo

Porque é que escolheram para ministra da educação uma senhora que escreveu livros nos quais, em mais de vinte anos, os protagonistas ainda não conseguiram passar do ensino secundário? Ou pretendem consolidar as pastas da educação e da administração interna e pôr os estudantes a combater o crime com recurso a apenas dois cães? "Trabalho de grupo do segundo período do 9º 5ª: apanhar o estripador de Odivelas."

Pensando bem é capaz de ser uma grande ideia. Diminui-se a criminalidade e a sobrelotação das salas de aula, e criam-se postos de trabalho, essencialmente no Insituto de Medicina Legal e na área da remoção de sangue do asfalto.

2010-01-19

Trancas à porta

Qualquer pessoa que alguma vez chegou a casa apenas para encontrar a porta arrombada e o interior virado do avesso decerto sabe o choque que isso representa. Somos tomados por um sentimento de privacidade violada, uma sensação de insegurança e pelo receio de que alguém tenha encontrado a caixa onde guardamos toda aquela pornografia japonesa que só é possível adquirir na internet e que nos chega às mãos em embalagens descaracterizadas que nos protegem dos olhares reprovadores e enojados dos vizinhos, como os que a nossa mãe nos lançava quando encontrava os desenhos a lápis de carvão que fazíamos da nossa prima em imaginativas actividades lúdicas de cariz intímo.

Quando, há vários anos atrás, fui confrontado pela situação em causa, a minha primeira reacção foi de um incaracterístico optimismo. "Olha", pensei eu, "queres ver que um grupo de mulheres a dias demasiado zelosas me veio limpar a casa? Ou será que o Pai Natal este ano veio mais cedo para evitar o trânsito do fim do ano?"

À medida que ia caindo em mim, passeando por entre o caos das gavetas despejadas e armários remexidos, e uma vez feito o inventário do que faltava - dinheiro, uns óculos escuros e a máquina que usava para rapar o cabelo, o que levaria a polícia a procurar por um careca extremamente estiloso a passear de táxi - um sentimento de indignação apoderou-se de mim. Não por um estranho ter usado e abusado da minha casa como se de uma daquelas raparigas que se oferecem na noite a quem pagar o próximo shot de tequila se tratasse, mas pelo que o ladrão deixou. "O quê? O meu discman não é suficientemente bom para ti, ó agarrado? E deves ter cds melhores lá na barraca, se calhar." Estava revoltado, mas era claro que se tinha tratado de um larápio gourmet. Um especialista. Um Arsène Lupin que, decerto, chuta apenas o mais exótico e fino dos cavalos. Fui roubado, sim, mas por um tipo com categoria, acostumado ao que de melhor as outras pessoas têm para oferecer. No entanto não pude deixar de me sentir como daquela vez em que o indivíduo com perturbações mentais que dormia no contentor do lixo ao fundo da rua me disse que eu tinha um odor corporal algo acentuado, e não de uma forma agradável.

Como nota final gostaria de avisar qualquer meliante que esteja a ler isto que não tenho nada de jeito em casa, e que por isso não vale a pena incomodarem-se a lá ir - a menos que gostem de livros do Irvine Welsh, mas se optaram por uma carreira na área do crime, vou arriscar a dizer que a única coisa que lêem é o menu da McDonalds e a lista de constituintes tributáveis da autarquia a que presidem.

Red lillight

Não fosse o esquentamento que touxe de recordação e talvez Gulliver tivesse tido mais sucesso a convencer a sua esposa de que não tinha frequentado a companhia de lilliputas.

2010-01-18

By your command

Quando era miúdo estava absolutamente convencido que estava um Cylon escondido debaixo da mesa da sala, e quando esta estava às escuras passava por ela a correr. Era até capaz de jurar que via a temida luz vermelha fitando-me fria e ameaçadoramente, esperando apenas um momento de distracção para atacar.

Sim, eu sei, era uma patetice, mas que querem?, tinha apenas quatro ou cinco anos. Agora sei perfeitamente que é nos roupeiros que os Cylon se escondem - e é por isso que durmo no sofá da sala.

This side up

Fazer amor é muito parecido com estacionar um carro: tenho sempre alguém a dizer-me coisas como "destroce, destroce", "vai, agora, prá frente", "pára, pára", "recua" e "aí é proibido".

E no fim também tenho de pagar.

2010-01-15

Quem espera...

Nunca mais combino nada com o Godot.

2010-01-14

O teu nome é liberdade

Não é que eu seja um entendido no assunto, mas, na minha opinião, se os responsáveis moçambicanos quiserem incentivar o turismo no seu país, acho que deviam começar por tratar de tirar a metralhadora da bandeira. Há qualquer coisa numa AK-47 com um facalhão na ponta que faz com que a ideia de hospitalidade e bons momentos não passe correctamente para o exterior - excepção feita, claro, para os gangsta rappers.

Afinal de contas quem é que desenhou a bandeira? O Ice T?

Avento

Quem acha que passear na praia é romântico certamente nunca ficou com a boca e os olhos cheios de areia depois de levar um chapadão dela no Guincho.

Acho que é por isso que as pessoas que vão para lá namorar ficam dentro dos carros, provavelmente, e isto a julgar pelo doce balançar das viaturas, a ouvir música.

2010-01-12

Pan pipes

Eu peço pouco da vida. Paz, saúde e o ocasional pequeno almoço na cama - mas em que as torradas e o Chocapic são substituídos pela Megan Fox e pela Megan Fox. Sim, duas Megan Foxes, porque, convenhamos, a Megan Fox é daquelas coisas que um homem nunca tem demais.

Ah, e também peço que não tentem usurpar o meu lugar numa fila. No entanto, ontem, na da caixa do supermercado, olhando casualmente para o lado, como quem não quer a coisa, só lhe faltando assobiar para o ar, uma velhota com um ramo de qualquer coisa verde na mão - salsa, bróculos, beterraba (a beterraba é verde?) ou o que quer que seja que as velhotas compram em ramos, não interessa, que eu não como nada que não tenha sido amamentado porque se Deus quisesse que nós comêssemos peixe e vegetais não os tinha posto debaixo de água e da terra, respectivamente, onde são tão difíceis de apanhar - tentou meter-se à minha frente.

Durante alguns minutos mantivemos uma luta surda pela posição e quando já me preparava para lhe dar uma cotovelada na orelha e um encontrão para cima do expositor da Matutano ela desistiu e foi tentar a sorte noutro sítio. Toda esta situação desagradável - e aqui convém ressalvar que só foi desagradável porque a senhora não chegou a ser projectada, caso contrário, imaginem, sacos a rebentar, batatas fritas a estalar, Matutazos a voar e todo um espectáculo de luz e cor - poderia ter sido evitada pois se mo pedisse de forma cordial em vez de tentar furar a fila, talvez a deixasse passar à frente. Ou, mais provavelmente, não, porque ela podia ter pressa para ir fazer a sopa mas eu tinha deixado pausado o filme Ginger Lynn, A Mulher Que Não Sabia Dizer Não para, por razões que agora não vêm ao caso, ir comprar papel de cozinha com grande capacidade de absorção e um tira-nódoas.

2010-01-11

Amor é amour

A nossa foi uma história de amor igual a tantas outras: rapaz conhece rapariga, rapaz apaixona-se, rapariga ignora rapaz, rapaz vê-a no pátio a curtir com o Filipe do 10º A, que tem uma mota, fuma e joga federado pelo DDS, rapaz passa a ouvir grunge, rapariga engravida do Filipe do 10º A, rapariga deixa a escola, rapaz passa por ela, um dia, perto do mercado onde ela vende t-shirts "a mil, freguês, é a mil" com um puto ranhoso a brincar aos seus pés, para sempre uma lembrança de sonhos perdidos e de uma vida que nunca terá, rapaz pensa "é bem feito" e vai embora com um mesquinho sentimento de superioridade e de vingança.

Agora que penso nisso, talvez amor seja a palavra errada.

2010-01-07

King of the impossible

"Flash, ô-ô, savior of the universe. Flash, ô-ô, he'll save everyone of us." Recebi apenas um olhar vazio como resposta. "Como é que não conheces esta música? Do Flash Gordon, pá!"
"Quem?"
"Nunca viste o Flash Gordon?"
"Não conheço."
"Não conh... Como assim? Nunca ouviste falar no Flash Gordon? No Imperador Ming? Na Ornella Mutti? A Ornella Mutti, man!"
"Não."

Este foi apenas o início de uma conversa que se revelou, frase após frase, cada vez mais deprimente. Cheguei à conclusão que tenho um colega tão novo que as séries de televisão de referência da sua infância são o Pretender e os X-Files. Nunca ouviu falar no Buck Rogers, n'Um Anjo Na Terra, só conhece a versão brasileira do Esquadrão Classe A, o primeiro mundial de futebol que se lembra de ver é o de 1998 e não sabe o que é uma televisão a preto e branco nem o que é esperar dez ou quinze minutos que um jogo de computador carregue. As polémicas à volta do Humor de Perdição e do Império dos Sentidos são para ele algo de tão desconhecido como os cromos a que era preciso passar cola para pôr na caderneta.

Eu sabia que os jovens andavam por aí, não sabia é que eram assim tão jovens.

2010-01-06

Push me and then just touch me

Nunca compreendi muito bem o fascínio alheio pelos telemóveis. Aliás, até 2005 eu era uma das oito pessoas de Portugal continental que não tinham nem um - tínhamos encontros trimestrais em casa da Alzira, no Cartaxo, para compararmos ábacos - contrastando, assim, com o resto do mundo civilizado e levando outros a exclamar com ar chocado "Não tens telemóvel?!"

"Roubaram-to ou perdeste-o?", perguntavam-me em tom acusatório, como que me exigindo explicações. "És sem-abrigo, não és? Queres uma sandes de fiambre?" A ideia de que alguém não estivesse interessado em ter um telemóvel era para eles algo saído de um filme do David Lynch. Nessas alturas sentia-me um misto de elo perdido com Carl Sagan tentando explicar o seu conceito de Deus a uma criança de seis anos.

Para dizer a verdade acho que a minha aversão em muito se deve ao facto de muitas pessoas se referirem a eles como telélés. Porque, vamos lá ver uma coisa: as únicas pessoas que se deveriam referir ao que quer que seja como telélé são as crianças que ainda elegem os Teletubbies como programa predilecto e gagos. Mas não. Há outros - provavelmente os mesmos que têm um cão chamado Pantufa e que se referem ao carro como "o boguinhas" - que insistem em fazê-lo. E a essas pessoas eu pedia que, por favor, parassem e que baixassem o volume porque ninguém está interessado em ouvir a música do Benny Benassi que têm como toque.

2010-01-05

Avataras e manias

Pá, mas está tudo maluco? "Ah, que o filme é em 3D e é altamente." Fónix, a minha mobília lá de casa é em 3D e eu não cobro às pessoas que lá entram para a ver. E não me venham com tretas, que os Na'vi não passam de Thundercats arraçados de estrunfes.

Chabala

Uma das minhas resoluções para este novo ano é usar mais vezes a palavra "algibeira" que, inexplicavelmente, foi remetida ao esquecimento pelo colectivo global. Sim, leram bem, colectivo global, porque me parece algo que administradores ou vice-presidentes de coisas importantes diriam e dizer coisas assim é outra das minhas resoluções. Tal como, por exemplo, "Dow Jones" e "índice Nikkei". Como em "aquela gaja dá-me cá um índice Nikkei que até fico todo Dow Jones..." Enfim, ainda é uma ideia em desenvolvimento.

Mas dizia eu que "algibeira", tal como outras palavras que tanta cor davam à nossa língua, como "latifúndio", "algoz" ou "Regisconta, aquela mááááquina", caiu injustamente em desuso e dir-se-ia até que o povo português a meteu no bolso e lá se esqueceu dela, algo com que eu não mais pactuarei. (Viram o que eu fiz? Algibeira; bolso. Foi espectacular, não foi? Mas não experimentem fazer isto em casa que ainda se magoam.)

Por isso, jovem, se tiveres mais de dezoito anos e o nono ano de escolaridade, junta-te a nós e vem algibeirar connosco. Agora que penso nisso, "connosco" soa mais a italiano que português. Tipo "La Basílica della Estrela? No connosco. Mamma mia!" Porque os italianos dizem sempre "mamma mia". Acreditem em mim que eu já lá estive.