2011-05-30

Lado D (de Drafts)

- Como é que podes estar tão calma?! Acabaste de matar um homem, isso não te faz sentir nada?
Ela acende um cigarro e, semicerrando os olhos, dá um primeiro trago. Segura-o entre os dedos esguios nos quais se fixa por instantes - dedos de pianista, dizia o seu pai, apesar de em nova apenas ter tido aulas de violino, naquele pequeno período de tempo em que os póneis e os unicórnios já não eram uma parte importante da sua vida e ainda não se interessava por rapazes.
- Ainda devo estar em choque. - retorquiu finalmente em tom indiferente.
Deixou-se cair no sofá, a cabeça inclinada para trás exalando o fumo lentamente, apreciando a nuvem que criava à sua volta.
- Ou se calhar sou uma assassina nata. Sou a Mallory Knox. - completou com um meio sorriso e, depois, recitando aquilo que se lembrava em voz nasalada - When they ask you who did this you tell'em Mickey and Mallory Knox did it.

Com as emoções igualmente repartidas entre espanto e desespero pela sua frieza, ele mantinha-se de pé, imóvel.

- Espera, porque é que sou eu a carregar este trambolho?, pergunta de súbito, como que alarmado pela sua própria estupidez, deixando cair com estrondo o tronco do homem gordo de bigode e cabelo às farripas lambido para a fonte que arrastava, e que envergava aquilo que em tempos fora uma camisa às riscas azuis e amarelas mas que agora não passava de um trapo ensopado em sangue, fazendo estremecer os copos que repousavam em cima da mesa de café. - Tu é que o mataste, tu é que devias carregá-lo. Foda-se, já tenho sangue nos sapatos!
- Mas eu sou frágil e pequenina - choramingou ela num lamento fingido, fazendo beicinho como se de uma criança se tratasse. - Além disso estes são os meus killer shoes, não os meus dead body disposal shoes.
- Então vai mas é calçar os teus psycho bitch goes to jail shoes porque eu, olha, fui! - exclama esticando o polegar na direcção da porta.
- Gosto tanto quando finges que tens vontade própria. É tão... sei lá, fofo! A sério, o que seria de ti sem mim?
- Sei que ia apreciar as tuas cartas com relatos pormenorizados de todas as sessões de sexo lesbiano no chuveiro da penitenciária...
- Bah, vai sonhando - retorque ela com uma careta.
- Todas as noites, bebé...
- Bebé?!...
- Sim, estou a experimentar a expressão. Não gostas?

Ela, de nariz torcido, apenas acena que não.

- Não tenho estômago para esta merda, preciso de um copo - suspira ele dirigindo-se ao bar tentando evitar pisar o sangue que parecia continuar a alastrar.

*

De pé, já reconfortado pela bebida, mãos nas ancas e pés afastados, tentando não chapinhar no sangue, ele olhava o corpo de forma quase clínica, procurando soluções.

- Tens cal? Acho que se pode usar cal para desfazer um corpo.
- Claro, qualquer mulher moderna tem um saco de 30 quilos de cal na despensa - estás parvo?! O que havia eu de ter para caiar num quinto andar?
- E um serrote? Podemos desmembrá-lo na banheira...
- Achas-me com ar de quem faz bricolage? - pergunta ela assumindo a sua melhor pose Vogue para fotógrafos imaginários.
- Bom, e se o embrulhássemos num tapete e o atirássemos ao rio como nos filmes de mafiosos?
- Boa ideia!, exclama ela com exagerado entusiasmo - carregamos um tapete obeso, em forma de gordo morto, com um par de pés pendurado, e atiramo-lo borda fora do catamarã a meio caminho de Cacilhas. És genial... - finaliza, com um trejeito de desdém.
- Estou a tentar ajudar-te, porra!
- E que sortuda que eu sou por poder contar com a tua mente brilhante; é como ter a ajuda do Coyote! Qual é a tua próxima sugestão? Uma fisga gigante para projectar o corpo da varanda para Monsanto?
- Tens alguma ideia melhor?

Ela apenas suspirou.

*

Tinham já passado... bom, de onde estava agora, também ele sentado no sofá, sorvendo de um copo bojudo mais um generoso whiskey que havia servido a si próprio, não conseguia ver as horas no relógio de pulso do homem gordo, mas tinha a certeza que era já tempo a mais do que aquilo que ele alguma vez tinha sonhado passar na presença de um cadáver. Pensou que, provavelmente, conseguiria calcular o tempo exacto que ali tinha passado contando as beatas que repousavam no cinzeiro onde ela deixava cair mais um botão de cinza da mesma forma que aquelas pessoas vêem a idade das árvores contando os seus anéis, mas o seu raciocínio foi interrompido.

- Podemos dizer que foi um acidente. Ou que ele me atacou. - diz ela, apagando o último cigarro.
- Que acidente? Esbarrou contigo e com a faca que por acaso estavas a segurar? Doze vezes?
- Eh! - protestou ela - não foram doze. Foram só três ou quatro.
- Só!...

Serviu-se de mais um whiskey que despejou de um trago.

- O que é que te passou pela cabeça? - pergunta ele batendo bruscamente com o copo vazio na mesa de café. Sem que tivesse dado por isso a sua disposição tinha-se alterado e sentia-se agora algo beligerante.
- Vi uma oportunidade... Ocasiões extraordinárias revelam pessoas extraordinárias.
- Onde é que leste isso, num pacote de açúcar?
- Lei da selva. Survival of the fittest e essas tretas todas. - murmura ela com um encolher de ombros quase imperceptível.

Ambos olham para o canto da sala onde repousava uma mala aberta, outrora pertença do homem gordo que ela havia conhecido no aeroporto horas antes, e dentro da qual estava mais dinheiro do que eles alguma vez tinham visto em pessoa, fosse real ou em cima de um tabuleiro de Monopólio.

- Nem sei como te apresentar aos meus amigos a partir de agora. O que é que achas: a minha namorada, a hospedeira? A minha namorada, a puta? Ou a minha namorada, a assassina? - o tom saiu-lhe belicoso, ácido e a tresandar a álcool.

Ela fulminou-o com o olhar.

- Podes-te ir embora se quiseres. Sabes onde é a porta, já a usaste muitas vezes.
- Vamos é chamar a polícia e acabar com isto de uma vez. Dizemos que tiveste de te defender e pronto! - exclama ele agitando a mão à sua frente como que mandando-a calar.
- Não tinhas acabado de dizer que essa era uma má ideia?
- E é. Aliás, hoje só tens ideias de merda. Mas vês outra alternativa?

*

Escudada da azáfama de peritos, inspectores e paramédicos que lhe enchiam a casa, abraçada a um dos polícias fardados, com a cabeça enfiada no seu ombro, e fazendo o seu papel de vítima na perfeição, ela chorava copiosamente, tremendo como varas verdes. As lágrimas podiam ser falsas mas a adrenalina era bem real.

- Pensei que me ia matar, - soluçou ela - pensei que me ia matar.
- Tenha calma, agora está segura - confortou o polícia secretamente satisfeito por tê-la nos seus braços.

- É o típico crime passional - comentou o inspector da voz rouca para o homem que fotografava, de diversos ângulos, o corpo junto deles. - O namorado ciumento mata o amante e matava-a também se ela não lhe tem desfeito o crânio com a garrafa de whiskey. Aberto e fechado, siga p'a bingo. - completou, rebuscando os bolsos à procura do isqueiro. - Depois tira fotografia ali ao gordo com uma grande angular para o apanhar todo.

"Survival of the fittest. E essas tretas todas." - pensou ela enquanto fazia as contas a um par de biquinis novos e um bilhete de ida para o Rio de Janeiro.

2011-05-19

Speak to me of heroin and speed

Está aqui na minha rua um casal a namorar à antiga, da rua para a janela. É bonito, ainda que pouco privado. Essencialmente porque ela mora num 12º andar.

Dwarf Invasion

Ontem vi um anão. Fiquei chocado. Não por ter visto um anão. Já tinha visto anões antes. Até já tinha visto um filme pornográfico com um anão. Um ou dois. Filmes, não anões. Mas também. Num deles estava um anão em cima de um banquinho de cozinha a praticar o amor, ainda que de forma grosseira e algo badalhoca, com a Kacey que, por sua vez, estava debruçada sobre a bancada de marmorite onde, decerto, uma qualquer família toma o pequeno almoço todas as manhãs. Deve ter ficado com a barriga cheia de migalhas de torrada.

Tinha um blazer azul escuro, daqueles com botões dourados - o anão que eu vi na rua, não o que estava por trás da Kacey empoleirado num banquinho de perna bamba em jeitos até de cair e se magoar -, e calças beiges ou beges ou cremes ou o que era. Claras, vá. E sapatos com berloques. Não os vi, mas aposto que eram sapatos com berloques. E franjinha. Berloques e franjinha. Castanhos.

Até aqui tudo normal. Banal.

O que me chocou foi a diferença de alturas entre nós. Ou, melhor dizendo, a pequena diferença de altura entre nós. Porque aquele era o anão mais alto que eu já vi. O... bom, agora ia dizer que ele seria o Dalip Singh dos anões, mas vocês provavelmente não sabem quem é o Dalip Singh. Mas pronto, ele era o Dalip Singh do mundo anão. É verdade que parei de crescer aos 14 anos, tanto física como emocionalmente, mas ainda assim, e apesar de já estar habituado a estar mais perto do chão que a maioria das pessoas, fiquei chocado. Seria ele jogador de basquete numa equipa composta unicamente por anões? Segurança de uma discoteca de e para anões? Não sei, mas além de chocado fiquei deprimido.

Lembro-me de um Dunga, de um Atchim e de um Soneca, mas não me recordo de haver um Calmeirão.

2011-05-02

Head Like A Hole

Bin Laden vivia numa casa sem internet nem telefone. E aposto que foi isso que ditou o seu destino. Alguém o deve ter reconhecido quando foi ao cyber cafe ver os e-mails ou aos Correios fazer uma chamada.