Lado D (de Drafts)
- Como é que podes estar tão calma?! Acabaste de matar um homem, isso não te faz sentir nada?
Ela acende um cigarro e, semicerrando os olhos, dá um primeiro trago. Segura-o entre os dedos esguios nos quais se fixa por instantes - dedos de pianista, dizia o seu pai, apesar de em nova apenas ter tido aulas de violino, naquele pequeno período de tempo em que os póneis e os unicórnios já não eram uma parte importante da sua vida e ainda não se interessava por rapazes.
- Ainda devo estar em choque. - retorquiu finalmente em tom indiferente.
Deixou-se cair no sofá, a cabeça inclinada para trás exalando o fumo lentamente, apreciando a nuvem que criava à sua volta.
- Ou se calhar sou uma assassina nata. Sou a Mallory Knox. - completou com um meio sorriso e, depois, recitando aquilo que se lembrava em voz nasalada - When they ask you who did this you tell'em Mickey and Mallory Knox did it.
Com as emoções igualmente repartidas entre espanto e desespero pela sua frieza, ele mantinha-se de pé, imóvel.
- Espera, porque é que sou eu a carregar este trambolho?, pergunta de súbito, como que alarmado pela sua própria estupidez, deixando cair com estrondo o tronco do homem gordo de bigode e cabelo às farripas lambido para a fonte que arrastava, e que envergava aquilo que em tempos fora uma camisa às riscas azuis e amarelas mas que agora não passava de um trapo ensopado em sangue, fazendo estremecer os copos que repousavam em cima da mesa de café. - Tu é que o mataste, tu é que devias carregá-lo. Foda-se, já tenho sangue nos sapatos!
- Mas eu sou frágil e pequenina - choramingou ela num lamento fingido, fazendo beicinho como se de uma criança se tratasse. - Além disso estes são os meus killer shoes, não os meus dead body disposal shoes.
- Então vai mas é calçar os teus psycho bitch goes to jail shoes porque eu, olha, fui! - exclama esticando o polegar na direcção da porta.
- Gosto tanto quando finges que tens vontade própria. É tão... sei lá, fofo! A sério, o que seria de ti sem mim?
- Sei que ia apreciar as tuas cartas com relatos pormenorizados de todas as sessões de sexo lesbiano no chuveiro da penitenciária...
- Bah, vai sonhando - retorque ela com uma careta.
- Todas as noites, bebé...
- Bebé?!...
- Sim, estou a experimentar a expressão. Não gostas?
Ela, de nariz torcido, apenas acena que não.
- Não tenho estômago para esta merda, preciso de um copo - suspira ele dirigindo-se ao bar tentando evitar pisar o sangue que parecia continuar a alastrar.
*
De pé, já reconfortado pela bebida, mãos nas ancas e pés afastados, tentando não chapinhar no sangue, ele olhava o corpo de forma quase clínica, procurando soluções.
- Tens cal? Acho que se pode usar cal para desfazer um corpo.
- Claro, qualquer mulher moderna tem um saco de 30 quilos de cal na despensa - estás parvo?! O que havia eu de ter para caiar num quinto andar?
- E um serrote? Podemos desmembrá-lo na banheira...
- Achas-me com ar de quem faz bricolage? - pergunta ela assumindo a sua melhor pose Vogue para fotógrafos imaginários.
- Bom, e se o embrulhássemos num tapete e o atirássemos ao rio como nos filmes de mafiosos?
- Boa ideia!, exclama ela com exagerado entusiasmo - carregamos um tapete obeso, em forma de gordo morto, com um par de pés pendurado, e atiramo-lo borda fora do catamarã a meio caminho de Cacilhas. És genial... - finaliza, com um trejeito de desdém.
- Estou a tentar ajudar-te, porra!
- E que sortuda que eu sou por poder contar com a tua mente brilhante; é como ter a ajuda do Coyote! Qual é a tua próxima sugestão? Uma fisga gigante para projectar o corpo da varanda para Monsanto?
- Tens alguma ideia melhor?
Ela apenas suspirou.
*
Tinham já passado... bom, de onde estava agora, também ele sentado no sofá, sorvendo de um copo bojudo mais um generoso whiskey que havia servido a si próprio, não conseguia ver as horas no relógio de pulso do homem gordo, mas tinha a certeza que era já tempo a mais do que aquilo que ele alguma vez tinha sonhado passar na presença de um cadáver. Pensou que, provavelmente, conseguiria calcular o tempo exacto que ali tinha passado contando as beatas que repousavam no cinzeiro onde ela deixava cair mais um botão de cinza da mesma forma que aquelas pessoas vêem a idade das árvores contando os seus anéis, mas o seu raciocínio foi interrompido.
- Podemos dizer que foi um acidente. Ou que ele me atacou. - diz ela, apagando o último cigarro.
- Que acidente? Esbarrou contigo e com a faca que por acaso estavas a segurar? Doze vezes?
- Eh! - protestou ela - não foram doze. Foram só três ou quatro.
- Só!...
Serviu-se de mais um whiskey que despejou de um trago.
- O que é que te passou pela cabeça? - pergunta ele batendo bruscamente com o copo vazio na mesa de café. Sem que tivesse dado por isso a sua disposição tinha-se alterado e sentia-se agora algo beligerante.
- Vi uma oportunidade... Ocasiões extraordinárias revelam pessoas extraordinárias.
- Onde é que leste isso, num pacote de açúcar?
- Lei da selva. Survival of the fittest e essas tretas todas. - murmura ela com um encolher de ombros quase imperceptível.
Ambos olham para o canto da sala onde repousava uma mala aberta, outrora pertença do homem gordo que ela havia conhecido no aeroporto horas antes, e dentro da qual estava mais dinheiro do que eles alguma vez tinham visto em pessoa, fosse real ou em cima de um tabuleiro de Monopólio.
- Nem sei como te apresentar aos meus amigos a partir de agora. O que é que achas: a minha namorada, a hospedeira? A minha namorada, a puta? Ou a minha namorada, a assassina? - o tom saiu-lhe belicoso, ácido e a tresandar a álcool.
Ela fulminou-o com o olhar.
- Podes-te ir embora se quiseres. Sabes onde é a porta, já a usaste muitas vezes.
- Vamos é chamar a polícia e acabar com isto de uma vez. Dizemos que tiveste de te defender e pronto! - exclama ele agitando a mão à sua frente como que mandando-a calar.
- Não tinhas acabado de dizer que essa era uma má ideia?
- E é. Aliás, hoje só tens ideias de merda. Mas vês outra alternativa?
*
Escudada da azáfama de peritos, inspectores e paramédicos que lhe enchiam a casa, abraçada a um dos polícias fardados, com a cabeça enfiada no seu ombro, e fazendo o seu papel de vítima na perfeição, ela chorava copiosamente, tremendo como varas verdes. As lágrimas podiam ser falsas mas a adrenalina era bem real.
- Pensei que me ia matar, - soluçou ela - pensei que me ia matar.
- Tenha calma, agora está segura - confortou o polícia secretamente satisfeito por tê-la nos seus braços.
- É o típico crime passional - comentou o inspector da voz rouca para o homem que fotografava, de diversos ângulos, o corpo junto deles. - O namorado ciumento mata o amante e matava-a também se ela não lhe tem desfeito o crânio com a garrafa de whiskey. Aberto e fechado, siga p'a bingo. - completou, rebuscando os bolsos à procura do isqueiro. - Depois tira fotografia ali ao gordo com uma grande angular para o apanhar todo.
"Survival of the fittest. E essas tretas todas." - pensou ela enquanto fazia as contas a um par de biquinis novos e um bilhete de ida para o Rio de Janeiro.