2009-11-27

Golden years

Ninguém tratava o Jorge por Jorge. Dependendo do dia era Jójó, Reco ou Cara de Bolacha, e nenhuma destas alcunhas eram do agrado dele. Um dia, num jogo de futebol, o Jorge marcou três golos, curiosamente todos com passes meus, que nem sou bom jogador nem nada - todas as equipas têm um cepo caceteiro e onde jogo eu sou esse gajo - e até estava de sapatos, embora não me lembre porque é que os meus pais me obrigaram a calçar sapatos nesse dia, que eu para deixar os ténis só obrigado e ameaçado, e ele insistia em celebrar comigo apesar de eu não querer porque ele escorria suor e eu não aprecio o contacto físico de Jorges suados. "O Cara de Bolacha marcou outro", gritou o Alex, que era do Casal Ventoso e costumava andar com um ferro enfiado na manga do blusão para quando tivesse de andar à porrada. "Cara de Bolacha é a tua mãe!", volveu, já farto e furioso, o Jorge, que talvez tenha incluído também na frase algo alusório à mãe do Alex exercer uma profissão liberal livre de impostos. Ora, como qualquer um da escola sabia, crescer para o Alex não era boa ideia, mas a Ana Carina estava a ver o jogo e o Jorge gostava dela, embora eu nunca tenha percebido porquê, porque nos mais de trinta anos de vida que tenho ela foi a maior cabra que alguma vez tive o desprazer de conhecer, e portanto ele não podia dar parte de fraco e recuar. "A minha mãe o quê?", indagou o Alex que, para sorte do Jorge, tinha tirado o casaco para jogar à bola. Estático, por medo ou pela Ana Carina, e apercebendo-se que tinha feito asneira e estava em apuros, o Jorge engoliu em seco enquanto o Alex atravessava o campo na sua direcção. Como herdei da minha mãe um espírito apaziguador e conciliatório, e como até me dava bem com o Alex desde que fizemos juntos um trabalho de grupo para Português, embora a parte dele tivesse consistido apenas em sublinhar a palavra "cabrão" no dicionário e pôr uma pastilha elástica no livro de História do Paulo para nos fazer rir - e fez, porque o Paulo não era do nosso grupo e passado uns dias aquilo começou a cheirar tão mal que ele teve de arrancar as folhas - meti-me no meio dos dois e pedi ao Alex para não stressar e não fazer a folha ao Jorge, nem ali nem às seis da tarde à porta da escola. "Ah", disse-me o Jorge depois do jogo a tentar armar-se em forte, "o meu primo é da Juve Leo, e se o gajo me batesse eu mandava-o matar." Eu fiz que sim com a cabeça e fingi que acreditei. A Ana Carina, essa, começou a andar com o Daniel, que era um repetente crónico e tinha aquele ar de sou-muito-cool-porque-sou-burro-e-orgulho-me-disso, e o Jorge nunca chegou a molhar a sopa. Soube uns anos mais tarde que estava numa clínica de desintoxicação na Alemanha a tentar tratar a dependência de heroína que entretanto adquiriu. Acho que a lição a tirar daqui é que as alcunhas são a porta de entrada para o mundo das drogas duras.

15 Comments:

Blogger Nawita said...

Adorei ler-te uma vez mais!

Nunca mais fico triste por ser das poucas que nunca recebeu alcunha no tempo de escola! Do que me livrei!

Chegaste a casa com os sapatos todos sujos e estragados não é?

27/11/2009, 14:39:00  
Blogger A said...

por isso, ou por se ter cara de bolacha.

27/11/2009, 14:43:00  
Blogger A said...

cara de space coockie.

27/11/2009, 14:43:00  
Blogger AD said...

Nawita,
O objectivo era mesmo estragar os sapatos para nunca mais ter que os calçar.

A,
Acho que uma coisa vai sempre dar à outra.

27/11/2009, 15:04:00  
Blogger Nawita said...

AD,
Eu percebi! A tua mãe é que não deve ter gostado nada.

27/11/2009, 15:12:00  
Blogger Isa said...

Eu nunca tive alcunhas ...

Mas tive um Alex na minha infância que "crescia" para todos que se aproximassem de mim. E depois as alcunhas ficaram todas para ele.

Bom texto e bonita infância, eu acho...

27/11/2009, 15:25:00  
Blogger tiagugrilu said...

Se a alcunha for "pés de pato", cabelo-à-tigela" ou "grilo-grelo" dá direito a drogas leves e álcool?

Ok. Faz sentido.

27/11/2009, 16:14:00  
Blogger Nawita said...

Grlu,

Claro que dá! Mas a idade dá-te o direito e dever de escolher sapatos com design perfeito e que não façam o teu pé parecer maior e cortes de cabelo decentes!


Não faças isso quando estás sob efeito dos outros, ok?




grilo-grelo??

27/11/2009, 16:19:00  
Blogger tiagugrilu said...

Neste momento tenho calçados uns téni-bota da adidas, clássicos, pretos com riscas amarelas, iguais às chuteiras que se usavam nos anos 40.

O corte de cabelo, é, digamos... normal.

Serve?

27/11/2009, 16:44:00  
Blogger Nawita said...

Sim, serve! Já podes ir agora consumir em estilo!
A adidas tem ténis muito fixes, mas apenas para homem e criança. Os de mulher agora são todos rosas com brilhantes!! O que é que se passa com esta gente pá?

Ontem no salão de cabeleireiro ouvi a dona a discutir com um puto que queria um corte de cabelo comprido com a franja a dar nos olhos. Ela disse “recuso-me a fazer um corte à fodasse!”

Obrigada grilu, se não fosses tu ia pensar que a tipa era maluca e mal-educada!

27/11/2009, 16:49:00  
Blogger Gata das Botas said...

Isto está tudo muito bonito, mas eu gostava era de saber o que aconteceu ao Alex. E também gostava de saber por que é que não fui convidada para o lanche...

28/11/2009, 00:07:00  
Blogger AD said...

Perdi o resto ao Alex - ouvi dizer que trabalhou como segurança no Casino Estoril mas nada mais - mas se o voltar a ver digo-lhe para te dar um toque. Ou melhor ainda, para te telefonar.

Houve lanche?

30/11/2009, 09:48:00  
Blogger Gata das Botas said...

Sim, ele que me ligue porque eu não costumo responder quando me dão toques.

Eu vi ali o A com um bolo... Não era para o lanche?

30/11/2009, 10:20:00  
Blogger A said...

não gata, essa é a minha cara. eu sei que é redonda, mas pensei que o bigode não desse para confundir.

30/11/2009, 10:21:00  
Blogger Gata das Botas said...

Desculpa, A, eu vejo mal à noite...

30/11/2009, 10:22:00  

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