Golden years
Ninguém tratava o Jorge por Jorge. Dependendo do dia era Jójó, Reco ou Cara de Bolacha, e nenhuma destas alcunhas eram do agrado dele. Um dia, num jogo de futebol, o Jorge marcou três golos, curiosamente todos com passes meus, que nem sou bom jogador nem nada - todas as equipas têm um cepo caceteiro e onde jogo eu sou esse gajo - e até estava de sapatos, embora não me lembre porque é que os meus pais me obrigaram a calçar sapatos nesse dia, que eu para deixar os ténis só obrigado e ameaçado, e ele insistia em celebrar comigo apesar de eu não querer porque ele escorria suor e eu não aprecio o contacto físico de Jorges suados. "O Cara de Bolacha marcou outro", gritou o Alex, que era do Casal Ventoso e costumava andar com um ferro enfiado na manga do blusão para quando tivesse de andar à porrada. "Cara de Bolacha é a tua mãe!", volveu, já farto e furioso, o Jorge, que talvez tenha incluído também na frase algo alusório à mãe do Alex exercer uma profissão liberal livre de impostos. Ora, como qualquer um da escola sabia, crescer para o Alex não era boa ideia, mas a Ana Carina estava a ver o jogo e o Jorge gostava dela, embora eu nunca tenha percebido porquê, porque nos mais de trinta anos de vida que tenho ela foi a maior cabra que alguma vez tive o desprazer de conhecer, e portanto ele não podia dar parte de fraco e recuar. "A minha mãe o quê?", indagou o Alex que, para sorte do Jorge, tinha tirado o casaco para jogar à bola. Estático, por medo ou pela Ana Carina, e apercebendo-se que tinha feito asneira e estava em apuros, o Jorge engoliu em seco enquanto o Alex atravessava o campo na sua direcção. Como herdei da minha mãe um espírito apaziguador e conciliatório, e como até me dava bem com o Alex desde que fizemos juntos um trabalho de grupo para Português, embora a parte dele tivesse consistido apenas em sublinhar a palavra "cabrão" no dicionário e pôr uma pastilha elástica no livro de História do Paulo para nos fazer rir - e fez, porque o Paulo não era do nosso grupo e passado uns dias aquilo começou a cheirar tão mal que ele teve de arrancar as folhas - meti-me no meio dos dois e pedi ao Alex para não stressar e não fazer a folha ao Jorge, nem ali nem às seis da tarde à porta da escola. "Ah", disse-me o Jorge depois do jogo a tentar armar-se em forte, "o meu primo é da Juve Leo, e se o gajo me batesse eu mandava-o matar." Eu fiz que sim com a cabeça e fingi que acreditei. A Ana Carina, essa, começou a andar com o Daniel, que era um repetente crónico e tinha aquele ar de sou-muito-cool-porque-sou-burro-e-orgulho-me-disso, e o Jorge nunca chegou a molhar a sopa. Soube uns anos mais tarde que estava numa clínica de desintoxicação na Alemanha a tentar tratar a dependência de heroína que entretanto adquiriu. Acho que a lição a tirar daqui é que as alcunhas são a porta de entrada para o mundo das drogas duras.
15 Comments:
Adorei ler-te uma vez mais!
Nunca mais fico triste por ser das poucas que nunca recebeu alcunha no tempo de escola! Do que me livrei!
Chegaste a casa com os sapatos todos sujos e estragados não é?
por isso, ou por se ter cara de bolacha.
cara de space coockie.
Nawita,
O objectivo era mesmo estragar os sapatos para nunca mais ter que os calçar.
A,
Acho que uma coisa vai sempre dar à outra.
AD,
Eu percebi! A tua mãe é que não deve ter gostado nada.
Eu nunca tive alcunhas ...
Mas tive um Alex na minha infância que "crescia" para todos que se aproximassem de mim. E depois as alcunhas ficaram todas para ele.
Bom texto e bonita infância, eu acho...
Se a alcunha for "pés de pato", cabelo-à-tigela" ou "grilo-grelo" dá direito a drogas leves e álcool?
Ok. Faz sentido.
Grlu,
Claro que dá! Mas a idade dá-te o direito e dever de escolher sapatos com design perfeito e que não façam o teu pé parecer maior e cortes de cabelo decentes!
Não faças isso quando estás sob efeito dos outros, ok?
grilo-grelo??
Neste momento tenho calçados uns téni-bota da adidas, clássicos, pretos com riscas amarelas, iguais às chuteiras que se usavam nos anos 40.
O corte de cabelo, é, digamos... normal.
Serve?
Sim, serve! Já podes ir agora consumir em estilo!
A adidas tem ténis muito fixes, mas apenas para homem e criança. Os de mulher agora são todos rosas com brilhantes!! O que é que se passa com esta gente pá?
Ontem no salão de cabeleireiro ouvi a dona a discutir com um puto que queria um corte de cabelo comprido com a franja a dar nos olhos. Ela disse “recuso-me a fazer um corte à fodasse!”
Obrigada grilu, se não fosses tu ia pensar que a tipa era maluca e mal-educada!
Isto está tudo muito bonito, mas eu gostava era de saber o que aconteceu ao Alex. E também gostava de saber por que é que não fui convidada para o lanche...
Perdi o resto ao Alex - ouvi dizer que trabalhou como segurança no Casino Estoril mas nada mais - mas se o voltar a ver digo-lhe para te dar um toque. Ou melhor ainda, para te telefonar.
Houve lanche?
Sim, ele que me ligue porque eu não costumo responder quando me dão toques.
Eu vi ali o A com um bolo... Não era para o lanche?
não gata, essa é a minha cara. eu sei que é redonda, mas pensei que o bigode não desse para confundir.
Desculpa, A, eu vejo mal à noite...
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